TERRITÓRIO MANTIQUEIRA

Geografia

São Paulo avança sobre Minas – para uns, uma península; para os mais românticos, um coração – São Bento do Sapucaí é a ponta de lança, auxiliada por Campos do Jordão e Santo Antônio do Pinhal, em São Paulo; e cercada por Gonçalves, Paraisópolis e Brazópolis, em Minas Gerais. No interior da península (ou coração! insistem os românticos), está Oliq, na fazenda Santo Antônio do Bugre.; está também cercando a entrada da península (o coração! ah, os românticos!) onde São Paulo ainda é também mineira: na fazenda São José do Coimbra, no alto, bem no alto, na mesma altura da Pedra do Baú, protegendo e fechando a remanescente entrada ou bandeira paulista, como posto de controle. Esse é o espaço de Oliq: o espaço difuso da divisa.
O território é essa região e sua gente, com seus modos de ser e fazer, com suas maneiras de relacionar uns com os outros. Chama-se sempre aquele com quem não se tem muita intimidade de “senhor” ou “senhora”. Nada de ir logo usando o primeiro nome. Se você pede para tirarem o “senhor”, vem um “é sinal de respeito”, ou de boa educação. O estrangeiro percebe logo o tom um pouco surpreso dos da terra. Em compensação, os trabalhadores – assalariados ou diaristas – se chamam aqui “camaradas”, como se estivessem trabalhando voluntariamente num dos muitos mutirões que fazem: para colheitas, para bater uma laje, para a pintura da Igreja de Santa Maria, para cozinhar para uma festa.

Gente

Há vários bairros rurais na península (coração!): antes da entrada tem a Bocaina, a Bocaina de Baixo ou Santa Rita e o Coimbra; depois tem o Bugre e o Cantagalo. Coimbra e Bugre são hoje pouco povoados. Êxodo da população da região. Caieiras e sua fábrica de celulose, seguida de São José dos Campos foram os primeiros polos de atração; hoje, com menor intensidade, Campos do Jordão. Divisão contínua da terra, a possibilidade de seguir a escolarização, a ausência de empregos, uma vida menos dura que a da roça, as maiores aspirações entre as mulheres: muita coisa move os que migram. Mas todos voltam para as festas, reveem parentes e amigos, comem novamente a comida da alma, reatam laços.

Na Bocaina, que é de maioria presbiteriana desde as primeiras décadas do século passado, tirando o aniversário de fundação da Igreja, o calendário é mais privado: casamentos, noivados, enterros. Nos bairros de maioria católica, o calendário de festas começa com a Semana Santa e a procissão de Ramos. Alterna, depois, para a Bocaina de Baixo, com a festa de Santa Rita. Depois vem um longo ciclo. Primeiro a festa do Cruzeiro: a única que congraça mineiros e paulistas (embora nunca se saiba ao certo quem é quem na divisa, nem o que diferencia uns dos outros). Os moradores do Cantagalo (supostos paulistas) e de Luminosa (supostos mineiros) se alternam na promoção da festa para a Santa Cruz, a Cruz Vera, no início de maio. Todos sobem por uma trilha aberta ano a ano para uma peregrinação, a pé ou a cavalo (mas já um ou outro motoqueiro aparece com sua “cabrita”), até o morro alto e íngreme, para ouvir missa e comer um churrasco – cada um toma conta de seu espeto. Sem muito medo do padre, alguns fazem aparecer garrafas de cachaça enterradas pelos que abriram a picada. É possível que haja muitas esquecidas no lugar – se um dia abrirem um sítio arqueológico, só encontrão os restos da festa: carvão, alguma bota perdida por bêbado, espetos de churrasco calcificados, e – muitas – garrafas de cachaça.

Comida

Planta-se milho; e muitos têm sua roça de feijão crioulo, fava e abóbora. Agora também planta-se morango. Às mulheres cabe o trabalho com a horta e os animais domésticos, criados sempre soltos: galinhas, patos, galinhas d’angola, às vezes gansos, que ultimamente andam meio sumidos. O forte é o leite, apesar do preço, apesar do trabalho sem descanso e sem fim de semana ou feriado (aliás, para feriado republicano, nota o estrangeiro, não ligam; só para os religiosos). Sistema antigo: vacas crioulas, soltas no pasto, ordenha manual. Só recentemente estão quase todos com tanques de refrigeração. Vende-se o leite com dificuldade – a estrada é ruim, dizem; e três compradores disputam a “linha” normalmente com pouca competição entre eles.

Esqueceram o jeito antigo de fazer queijo, com pingo e sal grosso, mas ele mesmo assim é gostoso. Na comida, a o milho reina, assim como o porco: quirerinha, pamonha doce, pamonha salgada, virado (qualquer prato que leve a farinha de milho com seus flocos crocantes). Para o estrangeiro, é estranho o único modo de matar galinha usado: torce-se o pescoço e se deixa a ave de cabeça para baixo, dependurada, para que o sangue se concentre na cabeça e no pescoço. Vai ser a parte mais disputada da frangada (também com farinha de milho), ou da galinhada (com macarrão), algo que todo camarada quer comer em dia de chuva e frio. Saem sempre, nesses dias, atrás de uma galinha gorda para comprar. A lenda reza que as mais saborosas são as roubadas.

Diversão

Há anos não aparece um circo, que vinha com frequência; só os ciganos vêm sempre. Alguns negociam com eles – um cavalo, uma mula. Mas, talvez, sempre com medo de serem enganados. Muitos fogem deles – têm medo de suas pragas. Suas tropas são grandes. Ao contrário do circo, são pontuais. Uma vez por ano estão aqui.

Diversão para os homens: bar, cavalos, mulas, conversa que engata. Diversão para as mulheres: trabalho, as visitas que acabam dando mais trabalho.

As redes sociais, com a chegada da internet, antes que viessem o telefone e o celular, dão confusão e fofoca; brigas e gente ofendida. Um mundo antigo aprende, aos poucos, a ser o que é, num mundo novo e regido por novas regras.

Território reconstruído, visto por um estrangeiro. Quanto tem de deformação impulsionada pelo amor por ele? Pelas pequenas descobertas do modo de funcionar dessa pequena sociedade, de sua língua, de seus modos de fazer?